As finanças públicas portuguesas fecharam 2016 com o menor défice em décadas, enquanto as despesas com pensões e salários voltaram a crescer. Hoje, muitos economistas neo-keynesianos veem Portugal como uma prova de que as políticas de expansão fiscal são capazes de relançar uma economia. A recuperação de Portugal é realmente um exemplo de que o keynesianismo funciona?
De acordo com dados publicados em março pelo INER (instituto oficial de estatística português), o défice do Estado em 2016 caiu para 2,1% do PIB, abaixo do objetivo de 2,5% definido pelas autoridades europeias e melhorando nomeadamente os resultados de 2015 (4,4%). A notícia logo surpreendeu os mercados, que se perguntam como um país com políticas anti-austeridade pode aumentar os gastos públicos ao mesmo tempo em que reduz o déficit. Neste artigo, propomos três explicações possíveis.
Primeira possibilidade: um novo "milagre" keynesiano
Para analisar a situação atual em Portugal, é importante relembrar a situação económica herdada em 2015 pela atual coligação governamental presidida pelo socialista António Costa: um país profundamente atingido pela crise económica, com a sua consequente destruição do emprego e do tecido produtivo , dependente de financiamento externo e com um sistema financeiro particularmente vulnerável.
Numa economia menos intervencionada poderia ter sido o suficiente para facilitar o ajustamento do sector privado, mas em Portugal (onde boa parte da actividade económica depende do Estado e mesmo em anos bons não havia disciplina fiscal clara) a crise gerou uma rápida deterioração das finanças públicas e um aumento exponencial da dívida. Perante uma situação manifestamente insustentável, o governo português não hesitou em pedir ajuda, pelo que foi acordado em 2011 um resgate de 78 mil milhões de euros, disponibilizado pela União Europeia e pelo FMI.
O programa de assistência financeira permitiu ao Governo português ter liquidez para manter as actuais operações do Estado e cumprir as suas obrigações imediatas, mas em contrapartida as autoridades portuguesas tiveram de implementar um duro plano de consolidação orçamental. Desta forma, o déficit foi gradualmente reduzido por meio de medidas bastante impopulares, como o aumento de impostos diretos e indiretos e cortes de serviços públicos, salários e pensões, enquanto o setor privado permaneceu relativamente estagnado e muitos jovens deixaram o país na ausência de oportunidades de emprego.
No entanto, a coalizão que tomou posse em 2015 não hesitou em endossar os postulados da economia keynesiana, que preconiza a expansão fiscal para recuperar a atividade econômica. Nessa visão, o aumento do gasto público aumenta o poder de compra dos cidadãos e estimula o consumo, o que permite ao Estado arrecadar mais impostos. UMA círculo virtuoso entre gasto público e déficit, em contraste com o círculo vicioso que Portugal parecia sofrer devido às políticas de austeridade. Por este motivo, o novo governo português não hesitou em reverter as medidas dos anos anteriores, novamente aumentando salários e pensões, reduzindo alguns impostos sobre os trabalhadores e congelando os planos de privatização de empresas públicas. O resultado foi um forte consolidação fiscal, o que demonstraria o eficácia das políticas neokeynesianas.
Segunda possibilidade: mudança de modelo econômico
Uma explicação alternativa para os bons dados de Portugal é a mudança para um modelo produtivo mais eficiente que o país viveu durante o período de recessão e ajuste (2009-2014). De acordo com essa abordagem, a economia pré-crise estava sofrendo de graves desequilíbrios macroeconômicos, especialmente a disciplina fiscal relaxada e um forte déficit externo, que atingiu 9,7% do PIB em 2008. No entanto, os planos de ajuste teriam levado a um aumento da competitividade com um duplo efeito positivo: por um lado, tornaram o país um destino mais atraente para os investidores internacionais; Por outro lado, os produtos portugueses têm conseguido competir melhor no mercado externo graças à redução dos custos de produção.
Os dados parecem corroborar essa teoria: o investimento estrangeiro direto dobrou entre 2009 e 2014, enquanto as exportações cresceram 41,6% no mesmo período. Desta forma, a economia portuguesa conseguiu corrigir seu déficit comercial histórico, e o setor externo passou de fonte de desequilíbrios a motor de crescimento. Por outro lado, o aumento do consumo privado tem compensado a contração do consumo público, enquanto o investimento vem perdendo destaque e sua queda só foi parcialmente compensada pela maior participação de investidores estrangeiros.
Portanto, nesta perspetiva, a redução do défice português seria simplesmente consequência da recuperação de uma economia mais produtiva, que teria sido alcançado graças a medidas com um forte custo social nos primeiros anos, mas que a longo prazo seriam relançar o crescimento e a criação de empregos.
Terceira possibilidade: mais gastos, menos investimento
Os mais cépticos em relação ao novo “milagre português” argumentam que não se pode falar de um sucesso das políticas neo-keynesianas porque elas, na realidade, não existiram. Embora seja verdade que o governo português tem implementado medidas que aumentam a despesa pública, também tem corte em outros setores não menos importantes como educação (eliminando o auxílio a todas as escolas privadas em áreas onde há outras escolas públicas). Do lado da receita, argumentam que a eliminação da contribuição extraordinária dos trabalhadores (implementada em 2014) foi compensada por um aumento dos impostos indiretos (bebidas açucaradas, bens de luxo, arrendamento de imóveis turísticos, etc.) que também reduz a poder de compra dos cidadãos.
No entanto, a área mais afetada pelos cortes do novo governo português foi sem dúvida o investimento público, que sofreu um corte de 29% (1.169 milhões de euros) no último ano. Esta redução constitui 0,7% do PIB, o que, somado à venda de ativos do Banif (que representou perdas na ordem dos 2.500 milhões, 1,5% do PIB), conduziria a uma melhoria total de 2,2%, quase a consolidação fiscal total para o ano (2,4%). O problema, segundo os detratores do governo, é que cortes no investimento público podem ter um impacto negativo na produtividade, além de permitir a deterioração da infraestrutura e levar o país a uma maior dependência do capital estrangeiro. Todos esses problemas podem não ser visíveis nos próximos anos, mas podem ser fatores de risco de longo prazo.
Portanto, de acordo com este ponto de vista, seria difícil falar de políticas neo-keynesianas uma vez que em termos globais a economia portuguesa é cada vez menos interveio. O gasto público, longe de aumentar, teria sido simplesmente realocado. Os dados também parecem apoiar essa hipótese: o gasto público passou de 48,4% do PIB em 2015 para 45,1% em 2016, enquanto a carga tributária caiu de 44% para 43,1%.
Em conclusão, podemos dizer que a consolidação orçamental portuguesa é um facto inegável, mas as suas explicações são tão conflituosas que é difícil qualificá-la como um sucesso sem receio de errar. A verdade é que hoje as finanças públicas podem estar um passo mais perto da sustentabilidade, mas a economia portuguesa ainda parece ter um longo caminho a percorrer, sobretudo se tivermos em conta que o desemprego (sobretudo jovem) se mantém em níveis elevados. Além disso, a dívida pública ainda ronda os 130% do PIB e os seus títulos são classificados pelas principais agências como “junk bonds”, o que dificulta o financiamento do Estado e mantém a sua dependência do BCE. Entretanto, as opiniões dividem-se entre quem vê Portugal como um exemplo de sucesso novo keynesiano e quem se surpreende constantemente com a forma como um país pode liderar a luta contra a austeridade na Europa, ao mesmo tempo que aprofunda os cortes aos seus próprios cidadãos.