As razões para a divisão na UE quanto aos fundos de reconstrução

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Anonim

Em 22 de julho, o Conselho Europeu chegou a um acordo histórico para o lançamento de um plano de estímulo às economias da União no valor de 750 bilhões de euros, com o objetivo de facilitar a recuperação econômica e financiar o aumento dos gastos públicos com saúde.

Embora a notícia tenha sido bem recebida pela opinião pública, o acordo alcançado também possui alguns aspectos polêmicos que prometem continuar gerando fortes polêmicas no futuro.

Em princípio, os recursos serão destinados a projetos relacionados à redução de emissões de carbono e digitalização da economia, bem como ao financiamento de despesas com saúde. Pretende-se, desta forma, promover uma trajetória sustentável de recuperação econômica e evitar o colapso das finanças públicas nos países mais afetados. No entanto, a diversidade de opiniões na União Europeia sobre as condições concretas de como o plano deve ser executado obrigou a um acordo que não satisfaz plenamente as ambições de todos e apenas após longas negociações em Bruxelas.

Cigarras e formigas

A primeira coisa a ter em conta é que o debate em torno dos fundos de recuperação europeus não passou pela sua existência, o que já tinha sido decidido há meses. Muito pelo contrário, as discussões giraram em torno do valor desses recursos, sua condicionalidade e qual proporção deles deveria ser concedida a título de doações não reembolsáveis ​​ou empréstimos de longo prazo. Não se trata, portanto, de solidariedade europeia, mas de disciplina orçamental e estabilidade económica.

Neste debate encontramos dois grupos de países muito bem diferenciados: de um lado, os ditos "frugais" (Holanda, Áustria, Suécia, Finlândia e Dinamarca), ou seja, os mais preocupados com o equilíbrio orçamental no União Europeia e, portanto, os mais interessados, relutantes em ajuda incondicional. De notar que, dada a sua dimensão e nível de rendimento, estes países seriam contribuintes líquidos para os novos fundos europeus, ou seja, contribuiriam com mais do que poderiam receber em troca.

Do outro lado, estão as economias mais afetadas pela crise, Espanha e Itália (em menor grau também Grécia, Portugal e França). Ambos altamente dependentes do turismo e da hospitalidade e arrastando problemas anteriores de dívida pública e déficits crônicos, eles solicitaram um esforço maior do resto da União Europeia para resgatar suas economias. Estes dois países seriam os mais beneficiados com a distribuição da ajuda, que poderia rondar os 140.000 e 209.000 milhões de euros, respetivamente.

Os países frugais, as "formigas" da Europa

No ritmo atual, a Espanha precisaria de 39 anos para sair da dívida para níveis estáveis, a Grécia 258 e a Itália 628

Do ponto de vista dos países "frugais", a situação atual guarda grande semelhança com a fábula do gafanhoto e da formiga. Naturalmente, a primeira categoria corresponderia aos países deficitários, incapazes de ajustar seus níveis de déficit e dívida pública desde 2014, quando a situação econômica era mais favorável. As formigas seriam os países que aproveitaram os anos de crescimento econômico para equilibrar suas contas públicas mesmo à custa de abrir mão de melhores serviços públicos, mas graças a isso agora estão em uma posição muito mais forte.

A chave do dilema é o espaço fiscal que esses grupos de países decidiram ter. Ou seja, a capacidade de pedir emprestado no caso de ocorrer outra crise no futuro (como finalmente aconteceu). Se, por um lado, os países "formigas" tivessem economizado o suficiente para poder voltar a se endividar sem comprometer sua solvência, os países "gafanhotos" teriam aproveitado os anos de boom econômico para afrouxar sua trajetória de consolidação.

A Espanha poderia ser um exemplo disso: desde 2015 tem aumentado seus gastos públicos todos os anos e não tem conseguido ter superávit, apesar de ter um crescimento invejável (às vezes mais de 3%). Em 2019, chegou a aumentar seu déficit em relação ao ano anterior pela primeira vez desde 2012.

O gráfico superior pode nos ajudar a visualizar esse raciocínio. Como podemos ver, é claro que em termos de sustentabilidade orçamental, a União Europeia pode ser dividida em três grandes grupos: países cuja dívida não ultrapassou 60% do PIB (nível recomendado), aqueles que já conseguiram reduzi-la abaixo esse montante e aqueles que ainda o têm de o fazer. À excepção da Áustria, podemos encontrar os países “frugais” nas duas primeiras categorias, o que é um claro indicador da sua disciplina orçamental e do seu empenho na estabilidade a longo prazo das finanças públicas. Entre eles, destaca-se a Holanda, que conseguiu quebrar a barreira dos 60% em apenas 2 anos e em 5 reduziu a sua dívida em 19% do PIB.

No extremo oposto, encontramos a Espanha, que reduziu sua dívida em pouco mais de 1% do PIB ao ano e levaria nada menos que 39 anos para voltar a níveis estáveis. Os números são ainda mais preocupantes se incluirmos países que receberam ajuda financeira externa ou estão a negociá-la, como Portugal (23 anos), Grécia (258) e Itália (628). O caso francês é diretamente impossível de estimar, uma vez que é o único país da UE que aumentou seu endividamento relativo no período 2014-2019.

É importante lembrar que o aumento do endividamento decorrente da crise do coronavírus não está incluído nessas estimativas, portanto, devemos esperar números ainda maiores. Em todo o caso, à luz dos dados, pode parecer claro que os países que agora pedem ajuda europeia estão efectivamente a pagar o preço de não terem aproveitado os anos de crescimento económico para equilibrar as suas contas. Seriam, portanto, países com enorme facilidade de endividamento em anos de crise, mas que apresentam grande resistência em sair da dívida em períodos de crescimento.

O apelo à solidariedade das "cigarras"

No entanto, o ponto de vista destes países é radicalmente diferente, visto que consideram que os fundos europeus são um pilar essencial da convergência económica em que assenta o projecto político da própria União Europeia. Segundo os governos da Itália e da Espanha, o perigo real para a Europa é deixar que duas de suas maiores economias (a terceira e a quarta, respectivamente) quebrem e acabem aprofundando a crise no resto do continente.

Por outro lado, a posição defendida pelos países que mais beneficiam dos fundos europeus vai muito além de um mecanismo específico de assistência financeira. Nesse sentido, o discurso visa consolidar sistemas de redistribuição de riqueza semelhantes aos já existentes a nível nacional, mas alargados ao nível europeu. Em outras palavras, se dentro de cada país os cidadãos ricos pagam mais impostos para transferir renda e serviços aos pobres, seria lógico que os países com maior renda per capita também repassem parte de sua riqueza para os mais pobres.

Negociações e risco moral

Os países frugais não podiam aceitar o que consideravam chantagem, mas também não podiam permitir que duas das maiores economias da União Europeia fossem à falência.

Esta não é uma questão simples, mas a teoria dos jogos e a análise das técnicas de negociação podem lançar alguma luz sobre o assunto. Em primeiro lugar, é claro que os países “frugais” percebem um claro risco moral na concessão de ajuda incondicional. À semelhança do que aconteceu com os grandes bancos na crise de 2008, Itália e Espanha poderiam estar recorrendo à sua condição de grande demais para falhar (grande demais para cair) Em outras palavras, o fato de deixá-los falir desencadearia uma recessão ainda maior em toda a Europa. Desse modo, Holanda, Áustria, Dinamarca, Suécia ou Finlândia acabariam cedendo, simplesmente porque não podiam se dar ao luxo de que não houvesse nenhum tipo de acordo.

O problema associado ao risco moral é que uma concessão desse tipo seria na verdade uma recompensa pela irresponsabilidade fiscal e, portanto, poderia gerar incentivos para que essas situações se repetissem no futuro. Os países beneficiários seriam confirmados em sua indisciplina e encorajariam outros a fazer o mesmo, enquanto os países salvadores perceberiam que seus sacrifícios foram em vão, pois acabaram nos bolsos dos sul-europeus. Em outras palavras, seria a chantagem que logo se transformaria em um círculo vicioso permanente.

No entanto, se o fato de serem grandes demais para cair poderia ter sido um argumento a favor da Itália e da Espanha, há também um fator que equilibra a balança: o tempo. Lembremos que esses países são os que mais precisam dos recursos em primeiro lugar, portanto, também teriam sido os mais afetados por um possível atraso nas negociações. Na medida em que carecem de fontes alternativas de financiamento (a maior parte de sua dívida pública deve ser comprada pelo Banco Central Europeu para garantir o pagamento de taxas de juros sustentáveis), também não podiam se dar ao luxo de não chegar a um acordo.

O consenso alcançado em Bruxelas responde, portanto, a um cenário de jogo colaborativo, ou seja, uma situação em que todos os jogadores maximizam seu resultado particular colaborando com outros. Desta forma, cada país poderia ter se beneficiado mais assinando um acordo no qual teve que fazer concessões do que não concordando em nada.

Isso explica o fato de os países "frugais" terem renunciado a algumas de suas demandas iniciais, como o direito de veto sobre os planos de gastos dos países beneficiários, e que estes, por sua vez, admitiram ter visto a proporção da ajuda direta reduzida e aceitaram a condicionalidade de os recursos para a apresentação de planos de consolidação fiscal.

Ao final, os 750 mil serão concedidos na forma de transferências diretas (390 mil) e empréstimos de longo prazo (360 mil), e serão distribuídos entre os países de acordo com critérios como população, PIB e taxa de desemprego. No entanto, a obtenção destes fundos estará sujeita a compromissos de ajustamento orçamental que deverão ser aprovados pelos restantes Estados da UE e as recomendações da Comissão Europeia serão obrigatórias. Com este acordo, a Europa decide apostar fortemente num plano de estímulo para sair da crise, selando um pacto que visa ultrapassar as suas profundas divisões internas.