Nos últimos anos, as notícias da imprensa econômica da América do Sul pareceram marcadas (embora com exceções) por uma maior preocupação com o equilíbrio orçamentário, a sustentabilidade da dívida no longo prazo, a redução da inflação e a recuperação da liberdade econômica.
Todas essas questões têm sido tradicionalmente vinculadas a escolas econômicas, como a monetarista, mas o surgimento da COVID-19 parece ter mudado completamente o cenário.
A resposta dos governos da América do Sul à crise econômica e de saúde desencadeou as projeções da dívida que estavam disponíveis no início de 2020. Nesse contexto, as autoridades da região enfrentam um difícil dilema: lançar planos de estímulos para conter o impacto da a recessão e ser hipotecado pelos próximos anos ou manter um orçamento equilibrado e deixar o setor privado resolver seus problemas sem apoio público.
As ideias keynesianas, dessa forma, estão mais uma vez no centro do debate.
Um continente com diversas economias e soluções
Como sempre aconteceu no continente sul-americano, existe uma grande diversidade de realidades econômicas entre os países, embora neste caso todos planejem aumentar seu endividamento. Nesse sentido, o caso mais paradigmático talvez seja o do Brasil, cuja dívida pública deverá atingir 100% do produto interno bruto (PIB) até o final de 2020.
Neste país, um dos mais afetados pela pandemia em termos de número de vítimas, o PIB caiu 11,4% ano-a-ano no final do segundo trimestre do ano e, como consequência, as receitas públicas também caíram. Os gastos têm crescido fortemente, não só pelas necessidades de saúde da população, mas também pelos novos planos sociais (como a renda mínima de 600 reais por mês). O resultado tem sido um aumento do déficit público, que terá um impacto direto no aumento do endividamento.
Outro país que planeja tomar empréstimos a taxas semelhantes é o Equador, onde o governo vem negociando um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para receber ajuda financeira. Neste caso, à semelhança do que ocorre na Colômbia, não foram implementados grandes planos de estímulo na forma de gastos públicos. Em vez disso, o Estado tem garantias garantidas para empresas que solicitam linhas de crédito.
Pelo contrário, o governo do Peru lançou o programa de gastos mais ambicioso da região. Com 4,6% do PIB, planos como o Arranca Perú buscam gerar empregos por meio da construção de obras públicas. Somando-se a essas medidas as garantias do Estado para os empréstimos solicitados pelas empresas (plano Reactiva Peru) e as prorrogações fiscais, o valor total dos incentivos pode atingir no máximo 20% do PIB.
Relançamento da economia
A lógica desses programas, que, como já mencionamos, estão sendo aplicados em muitos países da região, baseia-se no fato de que uma queda tão acentuada do PIB requer medidas de recuperação igualmente drásticas. A fórmula escolhida costuma ser um plano de obras de infraestrutura financiadas com dívida pública que podem beneficiar diversos setores e em toda a geografia de cada país.
O efeito desejado é que a construção dessas obras públicas amplie a demanda agregada, o que reativaria a atividade econômica com a criação de novos empregos. Por sua vez, os gastos com salários e materiais teriam efeito expansivo, uma vez que as empresas e trabalhadores beneficiados aumentariam seu consumo em outros setores da economia.
A estratégia acontece, nesse sentido, para dar um impulso adicional à demanda agregada que por sua vez estimula a oferta, fenômeno conhecido como multiplicador do gasto público. Devemos lembrar que essas ideias de inspiração keynesiana foram muito populares durante a Grande Depressão dos anos 1930 e alcançaram sua expressão máxima com o New Deal nos Estados Unidos.
Os próprios defensores desses planos de estímulo reconhecem que sua implementação pode aprofundar ainda mais os desequilíbrios orçamentários do estado e repassar o custo às gerações futuras por meio da dívida pública. No entanto, tendem a sustentar que a prioridade é recuperar o PIB o mais rápido possível, visto que uma economia fortalecida terá mais capacidade de fazer frente ao pagamento da dívida mesmo que ela seja maior.
A lógica do ajuste
Pelo contrário, os detratores destas medidas consideram que a sua eficácia é muito limitada por duas razões. Em primeiro lugar, emitir dívida pública hoje resultaria em mais impostos no futuro (ou cortes nos gastos públicos), reduzindo assim a renda disponível do setor privado no longo prazo, desacelerando a recuperação.
Em segundo lugar, a reativação artificial dos setores mais diretamente beneficiados não atenderia às reais necessidades dos consumidores. Isso significa que, ao término dos programas, os trabalhadores seriam dispensados e a economia voltaria ao seu estado inicial.
Esse ponto de vista tende a preferir uma recuperação mais baseada na Lei de Say, ou seja, onde os empresários reajustem sua produção aos novos padrões de demanda. Desta forma, os novos empregos criados seriam mais sustentáveis, uma vez que seriam direcionados para as necessidades reais dos consumidores ao invés de projetos temporários.
Políticas de oferta
Porém, para que uma reativação desse tipo seja viável, geralmente é necessária uma grande flexibilidade dos fatores de produção, o que significa, entre outras coisas, uma política de baixa tributação, respeito à propriedade privada e desregulamentação da atividade econômica e das relações trabalhistas. Como comentamos em artigos anteriores, a capacidade de resposta de uma economia para se adaptar às mudanças produzidas por um choque o fornecimento pode ser crítico.
Naturalmente, essa abordagem não está isenta de objeções, como atrasos orçamentários que, no curto prazo, podem levar a um corte de impostos. Outro aspecto problemático é frequentemente que, se as empresas não conseguirem se reajustar rapidamente, o desemprego poderá se consolidar a taxas excessivamente altas. Tudo isso sem levar em conta a sempre polêmica questão sobre as consequências sociais da desregulamentação do mercado de trabalho e dos movimentos de capitais.
Decidindo o futuro
A maioria dos governos sul-americanos parece ter aderido a políticas de demanda agregada, rejeitando uma recuperação baseada na Lei de Say. Em artigos anteriores, discutimos um exemplo como a Irlanda, onde essas ideias falharam, embora muitos analistas também recorram a casos opostos, como o New Deal, em que esse tipo de política teve efeitos positivos.
Refira-se, no entanto, que os planos de estímulo à procura agregada têm mais probabilidades de êxito quando o aumento da dívida se destina a investimentos produtivos e não a transferências. Por outras palavras, não é o mesmo que gastar 1 milhão de euros num programa de subsídios (transferências) do que gastar 1 milhão de euros na criação de uma empresa para a criação de empregos (investimento produtivo).
Sem dúvida, é uma decisão que dificilmente encontra consenso unânime entre os economistas, mas que, de qualquer forma, não pode ser avaliada com certeza até que se passem alguns anos e se perceba o impacto da dívida na recuperação. Dependerá se a região enfrenta uma nova década perdida ou se, ao contrário, aproveita seu enorme potencial para sair desta crise.